terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Melancolia (2011) Lars Von Trier

Melancolia (2011) Lars Von Trier


Lars Von Trier é, com certeza, um dos maiores cineastas da atualidade. Assistir Melancolia gerou aquela gostosa sensação de rever que força tem o cinema.

Seria necessário revê-lo e pesquisar, principalmente sobre as referências pictóricas que perpassam o filme, para tentar em vão escrever algo que fizesse jus ao filme. No entanto, faz-se urgente expressar de alguma maneira as impressões sobre o filme. Elogios e deslumbres a parte, com certeza ainda é cedo para realmente escrever sobre Melancolia. Por isso, sem tanta ambição, faço essas considerações.

A obra está dividido em duas partes, mas poderíamos dividi-lo em três: uma imagético-poética dos primeiros minutos, nos quais há um lento balé de imagens e de som (a trilha sonora é outro ponto alto do filme). A força pictórica dessa sequencia é uma mistura de alegoria e síntese do enredo que nos será apresentado – lembrou-me de 2001: Uma Odisséia no Espaço do Kubrick. Há uma mensagem clara: aqui não importará muito o suspense do desenvolvimento do enredo, há algo para além disso, o espetáculo do desenvolvimento da própria narrativa e de seus temas “transcendentais”. É, por exemplo, neste momento que nos é apresentada a releitura de Lars Von Trier da pintura Ophelia de John Everett Millai (pintor do século XIX). A imagem possui grande beleza plástica e anuncia os conflitos de Justine (Kirsten Dunst) em sua relação com a vida e com a morte.


Em seguida, temos a divisão própria do filme pelas duas protagonistas: (parte 1) Justine e (parte 2) Claire (Charlotte Gainsbourg). Essas duas irmãs lidam de forma completamente diferente com os conflitos de suas famílias. Na primeira parte, acompanhamos a festa de casamento de Justine se transformar em uma tortura do espetáculo em cujo palco-cárcere Justine tenta se manter equilibrada e atender às diversas expectativas de sua família e dos convidados. Enquanto a festa de desenvolve, cresce em Justine um grande sentimento de medo e desespero, ignorados pelos seus pais – por completo desinteresse – e por sua irmã, que tenta se mover entre a pressão de seu marido e dos cuidados para com Justine. O afeto de Claire pela irmã fica mais evidente na segunda parte, no entanto durante a primeira parte Claire assume quase papel de um dos carrascos de Justine. A festa termina com uma ruptura com os "projetos" sociais anteriores de Justine: consegue ser demitida do trabalho e acabar com o casamento. No entanto, para Justine, aqueles planos e aquela necessidade de sorrir solicitados o tempo todo por aqueles que se preocupam com sua felicidade, mostram-se um peso grande e angustiador, uma prisão. Essa felicidade, na verdade, é exibida como uma exigência exógena a personagem, estando muito mais intimamente ligada aos desejos das outras personagens - o investimento de John na festa, o trabalho de organização do evento de Claire, a pressão do chefe de Justine para que ela consiga o slogan através de um escroto joguete e até mesmo, parece-me, de seu marido, que apesar de complacente, doce, encaixa-se sutilmente neste tipo de atitude perante Justine - quase em referência ao romance entre Grace e Tom em Dogville.


Na segunda parte, conhecemos melhor Claire. Se, na primeira parte, Claire assume o papel de instrumento de concretização do ritual - a festa e o casamento -, agora ela se torna mais matizada, assumindo um duplo papel de cuidadora da irmã e de sua família – seu marido, John (Klefer Sutherland) e seu filho, Leo (Cameron Spurr) – e de uma mulher atemorizada pouco a pouco pela catástrofe iminente. Claire recebe sua irmã com problemas de depressão na sua casa, gerando um ambiente tenso, indesejado pelo seu marido. Nesse momento, as personagens imersam no drama da vinda do planeta Melancolia e a possibilidade de sua colisão com a Terra, anunciando o fim da vida na terra - aparentemente suspeita que John já possuía a mais tempo. Isso altera (ou antes satura) as relações entre as personagens, transformando o ambiente fílmico. O planeta é uma metáfora clara das mudanças que perpassarão todas as personagens e da discussão central do filme, deste sentimento de melancolia de impotência perante o mundo, porém a relação que as personagens travam com o acontecimento "do fim do mundo" ou de suas entradas em estado de melancolia, serão diversas.

As duas irmãs ganham aqui mais intenso contraste, mas agora invertido: Justine se torna mais viva e tranquila, pela possibilidade do fim que lhe consola (ou lhe oferece prazer como sugere certa a cena em que Justine deita nua à luz de Melancolia como se fizesse amor com o planeta, com a melancolia ou com a morte. Esta imagem é uma referência à estética de Paul Delvaux, pintor surrealista, no final do texto há referência a um blog onde essas questões pictóricas são melhor trabalhadas). Claire, porém, fica aterrorizada, tentando a todo custo, primeiro confirmar a vinda do planeta e, quando o fim torna-se evidente - uma solução para a situação.

Através das diferentes atitudes das irmãs perante a colisão de Melancolia, Lars Von Trier constrói uma dicotomia entre posicionamentos perante a existência (a vida e a morte). Justine representa o anseio do fim, a agonia da vida e de seus rituais. Vestida de noiva (ritual de passagem que termina por não se concretizar), impedida em diversas cenas de atravessar uma ponte (em cavalgadas com Claire, seu cavalo sempre empaca ali) assume esse lugar de uma existência agoniante, de uma impossibilidade de seguir em frente e chegar a outra margem, para a vida. Claire por outro lado, possui uma vida estável, um casamento, sem grandes conflitos. Ela não está em transição, mas em situação sólida, com um lugar social assegurado. Embora haja conflitos, ela tenta harmonizar sua vida à volta, buscando oferecer um lugar, a felicidade, a sua irmã Justine. Porém, essa estabilidade é construída sob uma existência baseada voltada para sua casa, atendendo a tradição e aos ritos sociais, alcançando certo nível de alienação - ela sugere várias vezes que não entende dessas coisas, seu marido lhe oferece as respostas, em geral, de que necessita -, Justine tem um trabalho, mas não nos é informado de algum trabalho de Claire que aparentemente vive para o marido, Claire destaca de sua família justamente pelo seu equilíbrio e controle da situação na primeira parte. Não à toa, Claire repete diversas vezes durante o filme "Justine, sometimes I hate you so much" (Justine, às vezes eu te odeio tanto). Em todas às vezes Justine não aceita assumir a atitude de Claire perante os conflitos. Mostra-se, também, essa relação estranha de amor e ódio que assumem as relações humanas.

Com a possibilidade do choque do planeta Melancolia com a Terra há uma mudança nesse cenário: Justine se consola com a morte e o fim da humanidade, torna-se mais tranquila e perde sua dificuldade de andar - como se as amarras sociais lhes fossem retiradas por um catastófrico niilismo. Cabe uma ressalva aqui: na minha opinião a fala de Justine de que a humanidade merece um fim, fala mais de si própria e de sua atitude perante seus sentimentos e o mundo que de um julgamento narrativo acerca da humanidade, ela não suporta aquela existência de valores que lhes são estranhos e o fim lhe representa o cessar de seu sofrimento. Para Claire, o fim iminente representa o fim de seus planos a descontinuidade da sua vida e de seu filho (a perpetuação da espécie, de si), ela entra em desespero, fruto de seu apreço à vida. Se Justine nutre certo "desprezo pela humanidade" e não consegue se mover no mundo, Claire, no entanto, alcançou metas e agora tem um filho, meta "maior" na vida de uma mulher nos valores de nossa sociedade. A relação com a colisão do planeta é completamente diversa, pois as personagens são inteiramente diversas.

Claire mantém uma posição de viver das aparências – sua proposta com a aproximação do planeta é terminar a vida tomando vinho com a irmã, como se nada estivesse acontecendo – enquanto Justine parece não querer ignorar o que sente e o porvir, preferindo encarar os fatos e enfrentá-los tais quais são. Se isso é válido perante a morte, podemos inferir que, durante a primeira parte, esta atitude de Justine era inviável para a própria vida – naqueles moldes burgueses – que necessita do próprio teatro para se manter estável. Seus pais são figuras que desequilibram essas aparências ao darem maior vazão às suas vontades, negando-lhe inclusive o apoio. Se por um lado, negam apoio a filha, representam o choque direto com os valores sociais daquilo que se espera do papel de pai e mãe. Eles são como figuras um tanto quanto libertas que desestabilizam aquele cenário.

O chefe de Justine representa as relações de poder de cunho econômico se apresentando sem máscaras perante Justine, mas sob o fetiche da ascensão social para toda a sociedade - metáfora das relações de trabalho em um mundo capitalista, opressoras mas de aparência elevadora do indivíduo. O marido de Claire – rico e completamente preocupado com as aparências e estabilidade da família – encarna bem o outro extremo desse conflito: ao dar-se conta do fim inevitável, assume seu sorriso – perante os demais – até o fim, matando-se escondido. Embora mostre-se como um agente de manutenção do equilíbrio na situação de tensão – escondendo informações e tranquilizando sua mulher e apoiando seu filho –, ao se aperceber da inescapibilidade da morte, não resiste à violência da realidade, preferindo terminar a própria vida antes do fim total, desassumindo seu papel desempenhado até então. Justine e Claire são personagens que estão entre esses dois extremos, sofrendo com os conflitos de duas posições sobre a realidade e as relações humanas.

Em uma das imagens que sintetizam o enredo no início do filme, temos Justine, Leo e Claire em frente a casa onde se passa toda a narrativa. Sob Justine vemos o planeta Melancolia no céu e, sob Claire, vemos a lua. Essa imagem reforça o caráter de estabilidade de Claire e desestabilidade das irmãs em situações diversas e inversas na narrativa – a lua que sempre estava no céu e era inofensiva, representa a estabilidade, a continuidade, a ordem, o previsível; e Melancolia representa a morte, a mudança, o fim. Entre elas a criança, inocente naquilo tudo, acompanhando sem muita consciência das dimensões culturais atribuídas à morte, à vida e aos conflitos que assumiria mais tarde quando introjetasse os valores da sociedade – o “peso” que se refere Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser. A Melancolia, enquanto sentimento, no entanto, não é inerente à vinda do planeta. Ela gera sentimentos inversos nas irmãs, angústia em Claire, conforto para Justine.

O final do filme é o mais brusco que já vi. Supera, inclusive, o final de Vivre sa vie de Godard que , com a morte extremamente crua e quase desinteressada de sua protagonista, ainda retém aspectos narrativos – música e a palavra fim, por exemplo. Em Melancolia, a colisão de Melancolia com a Terra enquanto Justine, Clarice e Leo estão a sua espera é seguida por apenas um silêncio e pelos créditos, suscitando o sentimento de vazio, no sentido de ruptura com qualquer continuidade, apenas o fim, dispensando a própria palavra, pela força da imagem final.

Nota para o comentário de Gabriel Dominato (texto referenciado ao final da postagem) no Plano Detalhe da revista eletrônica RUA. Durante o desenvolvimento do filme as tonalidades passam de tons quentes para tons cada vez mais frios, representando o estado emocional das personagens com a proximidade de Melancolia. Pensando nisto, percebi que o número de personagens diminui, também pouco a pouco (na primeira parte temos uma festa, na segunda a família e os empregados, depois a família (Justine, Claire, John e Leo) até sobrarem apenas as duas irmãs e Leo. Há nisso uma imersão cada vez maior no interior das personagens, a medida que o planeta se aproxima, as personagens se voltam cada vez mais para seus dramas, para sua própria melancolia. Filmicamente somos desligados de quaisquer outros personagens para cada vez mais observamos as protagonistas e adentrarmos em seus dramas. Lars Von Trier até brinca com isso, ao final do filme, quando Claire tenta desesperada ir para o povoado - sem obter sucesso - e Justine lhe responde: "parece que o destino quer que fiquemos juntas". O destino, me parece, é a direção do filme e sua obstinação de desenvolver seu argumento a todo custo, para desespero da pobre Claire.

Toda essa agonia e tensão, permeada de imagens belas e de uma direção única, também foi realizada sob excelentes atuações. Especialmente por Kirsten Dunst que consegue passar bem o sofrimento e apego a morte de sua personagem Justine. Mas, especialmente por Charlotte Cainsbourg , que, como Claire, oferece um espetáculo à parte, especialmente na sequencia em que tenta, em vão, arranjar algum meio de salvar seu filho do fim inevitável, entrando em completo desespero. Outro grande momento é roubado por coadjuvantes, os pais de Claire e Justine, nas atuações de Charlotte Rampling (Gaby) e John Hurt (Dexter). A mãe de ambas em seu discurso desestabilizador do casamento de Justine é realizada de forma maestral, fornecendo outro momento alto do filme, assim como suas reaparições.

Em síntese, Melancolia é um filme excelente que não merece apenas ser visto, revisto e discutido, mas que nos oferece esse desejo de pensar e de ir além daquilo que poderia ser meramente exibido na tela do cinema. Ele consegue intervir no expectador, provocando-o, seja pelo deslumbre estético ou seja pelo incômodo levantado nos temas e no seu enredo.

PS: Lendo na internet achei essas duas leituras muito boas do filme, uma é da própria postagem no Plano Detalhe, a outra é um comentário de Pablo Pacheco na publicação que dá uma leitura completamente diversa a desse link e da postagem que fiz aqui (e que me intrigou muito, inclusive). Vale muito a pena conferir: http://www.ufscar.br/rua/site/?p=7993

Ps²: Esse link tem um texto que trata das obras relacionadas ao filme. Muito bom! Vale a pena conferir:
Pretendo acrescentar outros links nos comentários, caso encontre outros textos pertinentes!

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