domingo, 25 de julho de 2010

De olhos bem fechados - RASCUNHO DE UMA CRíTICA

Somos seres sociais e no desenvolvimento de nossa cultura, transformamos nossos atos mais banais em verdadeiros rituais cheios de significados, elevando elementos banais e cotidianos a um status simbólico.
Assim, uma simples cadeira passa da sua significação original-material imediata de um amontoado de madeira para um objeto com função - proporcionar conforto, descanso -, com espaço adequado e valores - bonita, velha, adequada para um ambiente, etc. Da mesma forma, essa significação ultrapassa as relações com aos objetos materiais, alcançando nossa relações sociais: atribuímos valores, funções e estabelecemos ritos - burocratizamos! - nossas relações pessoais, sociais, afetivas. Assim, um beijo no rosto ou na testa tẽm significados diferentes e momentos adequados - que podem ir além do simples desejo de fazê-lo. O sexo ganha uma dimensão boa, suja, proibida, liberada, a virgindade um momento de passagem de um processo de desenvolvimento físico e emocional, etc.

Nesse contexto de burocratização das relações, de valores e significações, símbolos e padrões, para não falar em neurose generalizada ou utilizar o conceito de sociedade do controle de Foucault ou Deleuze, temos a fantástica última obra cinematográfica de Stanley Kubrick: De Olhos Bem Fechados.

Eyes Wide Shut (1999) no original, direção do referido Kubrick, atuação fantástica de Nicole Kidman e Tom Cruise interpretando este Dr. William Harford - um bem sucedido médico americano - e aquela sua esposa , Alice Harford, uma mulher atraente e sensual, que vive uma vida comum e familiar com a filha do casal: Helena.

A partir desse panorama, desenvolve-se uma trama de sedução, ciúmes, mentiras e muitos revezes problematizando as relações familiares e de gênero em uma sociedade burguesas, na qual a aparência supera a essência, escravizando os indivíduos através de seus papéis sociais, ou seja, a já citada cultura e seus ritos tão caras ao nosso desenvolvimento, agora em um contexto de valores de vida burgueses e cada vez mais globalizados, assumem uma dimensão determinada, em que os ritos ganham uma dimensão tão importante, conseguindo suplantar - para o indivíduo - sua origem, sua necessidade real, havendo uma alienação das relações sociais, uma (des)significação dos ritos que agora cumprem um papel opressor ao indivíduo.

Assim, um casal bem sucedido (profissional e financeiramente) como aquele apresentado pelos protagonistas, assumem um estilo de vida onde seu casamento extrapola aquilo que deveria ser sua função inicial: a união de dois indivíduos que se amam, para uma relação de dependência que, na fala de um personagem, o grande sucesso do casamento é conseguir tornar a necessidade do outro uma necessidade individual.

Mas, essa crítica contundente e ácida não seria a mesma sem a direção surpreendente de Stanley Kubrick: ele consegue nos guiar e seduzir durante uma narrativa sensual, aterrorizante e inusitada que nos cativa, comove, assusta, aterroriza, a partir das situações mais inusitadas em episódios que ganham uma dimensão tão grande que extrapolam seu espaço narrativo, muito embora ao mesmo tempo sejam um elemento de uma narrativa maior que compõe uma mensagem que reúne desde um diálogo dramático entre o casal, tentativas de sedução em uma festa, perseguições, morte, rituais sexuais excêntricos e aterrorizantes, em uma crítica única aquilo que representa a família burguesa na nossa sociedade atual.

Ao voltarem de uma festa em que ambos passam por situações de sedução extra-conjugal, Alice e Wllliam tem uma discussão pesada e reveladora sobre seu casamento: Alice através da revelação de uma fantasia erótica do passado põe em cheque a idéia (representação) das mulheres machista de seu marido. William diz que o importante para as mulheres é a estabilidade e o lar, atribuindo o fato de nunca ter ciúmes de sua mulher a uma confiança fálica no seu papel masculino na relação. Alice ao revelar sua fantasia, mostra-se como uma mulher que deseja muito além do que a idéia limitada e machista do médico sobre as mulheres pode conceber, esmigalhando uma segurança de seu casamento que se baseava em uma relação de superioridade masculina a sua mulher (e toda as outras).
A partir daí, William sai de seu apartamento, a fim de ir visitar a família de um paciente seu recém-falecido, e vagueia pela cidade encontrando diversas mulheres nas mais diversas situações: todas são mais fortes e tem um papel ativo e preponderante que inferioriza o patético Dr. William: seja na forma de uma prostituta que oferece o corpo ao Doutor, mas em domínio de toda a situação, em um gozo não realizado pelo telefonema de Alice; de uma mulher que salva o médico de uma humilhação ou morte em uma estranho e inusitado ritual erótico, dentre outros.
O Dr. William termina por concluir seu itinerário de choques e conflitos que lhe escapam o domínio no quarto de sua esposa, chorando aos pés dela, contando tudo que passara, como um filho que corre para sua mãe. Se Nicole Kidman já contrasta desde o início com o Tom Cruise pela altura diferenciada e superior, a narrativa reafirma essa superioridade. Temos um ciclo de (re)conhecimento da não superioridade masculina e do desejo e força feminina que esmaga uma segurança masculina baseada em uma discriminação de gênero.
Ao final, ficando patente os papéis diferentes e de interesses antagônicos a relação institucionalizada pelo casal (o casamento), a conclusão é a permanência na relação, mantendo-se uma relação que se baseia na manutenção de uma instituição já falida.
Essa relação é reforçada por diversos momentos do filme, como do estabelecimento em que o Dr. William compra uma fantasia, a fim de participar do estranho ritual em uma loja na madrugada americana: lá encontra uma menina desequilibrada e nova em relação com dois homens extremamente mais velhos, com a indignação violenta de seu pai (o dono do estabelecimento). No outro dia, quando ele vai devolver a fantasia, apesar de todo o estardalhaço da noite, saem todos os três em comunhão, ao que o Dr. se revolta e reclama com o dono do estabelecimento que diz que tudo foi resolvido através do concílio do dinheiro.
A filha do dono do estabelecimento é mostrada como uma mulher sedutora e firme. No final das o dinheiro - a venda da filha aos dois japoneses da noite anterior -, institucionaliza - legitima, torna menos impuro - uma relação que era imoral antes através do pagamento. É uma crítica pesada às relações capitalistas em que a economia dos valores simbolicamente construídos ganham uma dimensão hipócrita e demagoga. Muito embora ela choque no momento William, é na verdade, o reflexo de sua crença anterior e machista, de relações que se baseiam em segurança material, é a permanência das aparências e da vida socialmente aceita que alicerça seu casamento.

Assim, o fantástico filme do Kubrick consegue através de imagens belas e envolventes, trilha sonora que entra no mais fundo da mente causando as mais diferentes emoções, realiza uma crítica ampla e contundente aos valores falidos de uma sociedade que o século XX não conseguiu fazer falir, legitimando a neurose e alienação de muitos.

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Este texto é um rascunho temporário de uma crítica que voltarei a escrever.

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