(texto realizado para o eixo temático de debates do grupo Filosofia Carcará com a pergunta Por que uma filosofia Carcará?)
Quando somos, falamos ou pensamos em Brasil, vêm a nossa mente as mais diversas concepções e imagens, muitas abrangidas pelo extenso guarda chuva da palavra cultura, outras políticas, territoriais, históricas, etc. Mas, o fato é que o Brasil como nação e Estado não tem um histórico de consistência unívoca “ontológica”.
Hoje, até mesmo a mais simples afirmação do descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral em 1500 é contestada por historiadores, seja no caráter da personagem histórica ter sido realmente a primeira a fazê-lo ou do fato do próprio ato de descobrir – afinal já havia índios, e o único mistério do “Brasil” era para o resto do mundo, ou se formos mais objetivos, para a Europa que cunhou a ideia de descobrimento. Mas, podemos ir mais longe, e questionar inclusive o descobrimento de um Brasil, que na verdade será construído posteriormente, seja a palavra Brasil – éramos antes a Ilha de Vera Cruz –, seja a ideia de uma unidade política/territorial – éramos colônias de Portugal –, seja de um Estado – que surge com a formação do Império do Brasil –, ou a ideia de Nação tão debatida desde o Império por historiadores como Vanhagem até hoje – continuando nebulosa e contraditória, sem falar de diferente: o Brasil do século XIX até o XXI, não é uno, mas também diverso: são inúmeros e históricos Brasis que se inter-relacionam.
Até aqui foi focado a questão política e conceitual: duas heranças mais consolidadas da historiografia, muito embora não sejam as únicas formas de trabalhar tal temática. Hoje já levantamos outros questionamentos, historicizando o Estado, as territorialidades, as diversas formas de organizações políticas, as ideias de nação, os personagens/grupos sociais que compunham a nação – uma questão que exemplifica bem o delinear das perspectivas historiográficas que trouxeram aos holofotes diversos personagens – a corte, o povo, os esclarecidos, os negros, os índios, os estrangeiros, os portugueses, os paulistas, os cariocas, os nordestinos, os operários, os trabalhadores, os empresários, os movimentos sociais, gays, heteros, cabras-macho, travestis de carnaval, mulatas, prostitutas adultas e infantis, povo hospitaleiro e alegre ou um povo esfomeado? O Brasil da novela das oito ou de Rio 40 graus? - Não são apenas exemplos que explicam variações de perspectivas históricas, mas também olhares sobre homens e mulheres que compõe aquilo que chamamos de povo brasileiro, ou de Brasil – quais são as peças certas e seus locais no quebra-cabeça que é nosso país?
São grandes e inúmeros as perspectivas de divisão de nossa sociedade, todas historicamente localizadas. Hoje, com a defesa de uma pluralidade de perspectivas históricas, contemplamos uma salada de teorias que nos permite identificar o quão complexo é pensarmos nosso país, mesmo com o tão falado fenômeno da globalização, da economia de mercado, da cultura de massas, etc. - que tanto anunciam uma homogenização dessa diversidade - continuamos buscando o Povo Brasileiro e percebendo o quão diverso ele é. Essa procura continua atual, mas cada vez menores nos parecem antigas bússolas, mapas ou quaisquer teorias ou métodos que se mostravam ou se propunham completamente satisfatórios, ou seja, capazes de esgotar as questões – o que provavelmente sempre será. Não temos um Brasil, temos Brasis.
Mas, não foram apenas os intelectuais que pensaram o Brasil: a arte também pensou o Brasil, tomando seu quinhão e formando representações de brasilidade: de 1930 para cá – provavelmente antes, mas me limito a falar superficialmente dessa data para cá – foram muitos os movimentos que buscaram pensar nossa nação: a Semana de Arte Moderna, O Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa, O Cinema Novo e a estética da fome de Glauber Rocha, a estética Nacional e Popular, a UNE e o CPC, O Tropicalismo: esses e outros movimentos pensaram o Brasil de alguma forma, contribuindo nunca definitivamente para conhecer e construir nossa brasilidade.
Os conflitos de tais discussões continuam sendo discutidos ainda hoje: arte pela arte x arte engajada; Independência artística do Brasil e Imperialismo/Colonialismo; a busca pela cultura popular e sua oposição a uma cultura de elite; crítica/validação de uma “cultura burguesa”, etc. Esses conflitos perpassam não apenas a arte, mas outros âmbitos, como a economia: o nacionalismo varguista, a ditadura varguista, o nacionalismo militar, a ditadura militar, o populismo de Lula, Vargas, Jango. Os projetos, as posições políticas, todos representaram inúmeros projetos de Brasil que buscaram dar fôlego a algo que tenta se consolidar dia a dia, mas que se mostra maior e mais complexo a cada minuto que passa.
Mas tentemos não nos deixar impressionar: essa complexidade, essa indefinibilidade, essa diversidade, não é monopólio, não é característica única de nosso país. Assim, também com crises de identidade, com tropeços e acertos, com bons e maus frutos, também caminha a humanidade e seu conhecimento produzido.
Suas filhas, mais velhas que nosso país, também vivem em constante autocrítica e nos divãs das universidades, das salas de aula de ensino médio e fundamental, no banco de uma praça, na sarjeta de um centro de cidade, na estrada, no sol tropical, nas chuvas torrenciais, no abafado da mata amazônica em qualquer lugar desse país – e fora dele também -, renovam-se a História, a Filosofia, as artes, a Sociologia, a Música, em síntese: os conhecimentos reconhecidamente disciplinares que buscam apreender homens e mulheres em permanente mutação. Todavia, tais homens e mulheres, mais que proferirem palavras – embora alguns até tentem reduzi-los a elas! - comem, amam, dormem, cantam, dançam, vivem sua humanidade na plenitude que sua existência, condições e ações lhes permitem.
Essa indefinibilidade não é estritamente brasileira – embora tenhamos problemáticas, sim, tupiniquins. Ela é Européia, é asiática, é americana, é terráquea - ela é humana. Os objetos, o conhecimento, o pensamento, e, principalmente, a forma de pensar, embora, muitas vezes, propunham-se assim, não são imutáveis - elas acompanham a humanidade. Assim, seja o Brasil ou o conhecimento, não podemos enjaulá-los em formas estáticas ou vê-los como um cubo que, sem podermos ver todas as faces de uma vez só, abstraímos o que nos é negado ver por uma totalidade imaginária. Devem ser renovados e reconstruídos sempre, mas sem negar seu passado! Não deixemos para trás aquilo que já foi dito, mas nos apropriemos do conhecimento acumulado durante milênios, inclusive buscando aqueles que tiveram sua voz vetada, escondida, enterrrada, silenciada. Ampliemo-los em todas as direções, temporal, espacial e epistemologicamente, de forma pertinente e plausível.
Buscar novos horizontes, requer extrapolar as limitações usuais do pensar e também as práticas da academia. Pensar, apenas, não basta: há que se debater, discutir, contrapor, relacionar o conhecimento de um com o do outro, cada agente com sua herança de experiências e leituras – centenas de homens e mulheres dentro de cada um, em um grupo, formando um verdadeiro exército. Fomentando e realizando práticas.
Nasce assim a Filosofia Carcará, nesse desejo intenso de discussão, dessa sede de conhecimento, de discussão, mas acima de tudo de levar esse debate a algum lugar, de comunicá-lo de ser um agente histórico consciente e mais efetivo de seu tempo. Do não consentimento com as limitações políticas que nossa furada democracia tenta maquilar em belos textos tão distantes da realidade. A tentativa de se equiparar a ave de rapina que do alto vê uma maior proporção da barbárie humana, alimentando-se de seus dejetos, voando livre, odiada por homens e mulheres, anunciando sua morte quando o seu cantar ecoa noturnamente sob casas do interior paraibano.
Procuramos esse novo pensar Brasil e o conhecimento, sob a angústia e incerteza de um pensamento que tanto pode anunciar a vida ou a morte da humanidade. A permanência ou a ruptura com a barbárie do capitalismo, a busca por novos horizontes de conhecimento, de afetividade, de vida: pois queremos um pensamento no e para o mundo, para um Brasil que queremos ver florescer em um jardim camaleão: que tem a ousadia de mudar suas cores conforme o tempo passa, uma obra de arte que se constrói todo dia.
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